Cuidar e se deixar cuidar: eis a questão!

A experiência de cuidar de alguém, seja o cuidador um familiar ou um amigo, seja um profissional contratado, é como uma estrada de mão dupla: uma pista vai, a outra volta. Cada via é ocupada por partes igualmente protagonistas na relação, e ambas são compostas de variáveis múltiplas, o que pode tornar o processo mais ou menos complexo, mais ou menos sofrido, mais ou menos efetivo.

Primeiro, vamos olhar a situação na perspectiva do cuidador. O ato de cuidar demanda disposição física e uma dose extra de energia para dar conta das tarefas mínimas como dar banho, fazer uma comida, lavar a roupa suja, arrumar o quarto, entre outras tantas que se diversificam conforme o contexto de quem está sendo cuidado. Também é necessário o senso de organização prática para lidar com a administração de remédios, quando for o caso. Geralmente, a logística da rotina é cheia de detalhes que nunca se esgotam, nem mesmo quando a pessoa dorme, pois pode ser inevitável acordar várias vezes durante a noite para atendê-la.

O cuidar chega a ser fisicamente extenuante, e não é por acaso que muitos cuidadores são impactados pela síndrome de burnout. Como o próprio termo indica, “queimamos” nossas forças até a última gota para vencer as batalhas do dia a dia. Além disso, acompanhar alguém que carece de cuidados constantes também exige dedicação emocional, o que implica outra série de habilidades e capacidades psíquicas e mentais particulares. Por isso, quem cuida precisa ser cuidado, dizem os especialistas. Sua saúde mental deve permanecer no radar, fato não tão evidente. Nem sempre conseguimos manter o prumo das emoções em situações estressantes. Em muitos casos, estão presentes os sentimentos de  impotência, de culpa, de responsabilidade excessiva. Em outros, a racionalidade predomina e automatiza o cuidado, negligenciando alguns aspectos importantes na relação. A verdade é que raramente se alcança a fórmula balanceada que mescla boas práticas com atenção compassiva.

Claro, cuidar de alguém não é sinônimo de tarefa pesada. Podemos entender e vivenciar isso como um exercício espontâneo e parte integrante da vida compartilhada. Contudo, a relação de cuidado mexe naturalmente com os nossos sentimentos e pode evocar questões mais inconscientes, embolando o meio de campo. É quando o cuidador não consegue proteger completamente sua vida íntima e acaba chamuscado pelo desgaste implícito nas tarefas diárias.

A disponibilidade afetiva e a disposição física do cuidador são imprescindíveis para que tudo ocorra de maneira mais fluida. Não há dúvidas! Por outro lado, é na reciprocidade do cuidado que encontramos melhores chances de oferecer ao outro aquilo que se faz necessário. Tendo isso em vista, vamos considerar o prisma de quem está sendo cuidado.

Quando perdemos a autonomia e/ou a independência, sem importar em qual intensidade isso ocorre, somos testados em nossa capacidade de reconhecer e aceitar as limitações que as circunstâncias nos impõem. Por vezes, isso se torna difícil em função da falta de compreensão cognitiva. Por exemplo, pessoas com problemas neuropsíquicos têm pouca consciência do que está acontecendo com elas e perdem a conexão com os dados de realidade. Elas se percebem operantes, mesmo quando sequer conseguem tomar banho sozinhas. Então, não dá para esperar que sejam colaborativas e que se permitam receber qualquer tipo de cuidado. Mas há casos de pura teimosia mesmo, e esses são os mais complicados de lidar. É um grande desafio assistir alguém que não se deixa cuidar, independentemente do motivo.

Essa pessoa é convocada a encarar sentimentos difusos que reforçam sua resistência ao cuidador. Admitir que já não absorve as tarefas básicas da vida cotidiana pode gerar muita frustração e empobrecer sua autoestima. É nesse contexto que surgem frequentes confrontos e conflitos recorrentes com os cuidadores, demandando esforço ainda maior para que se consiga fazer o necessário dentro daquilo que é possível.

A falta de abertura para o papel do cuidador pode desencadear dilemas difíceis, levando a questionamentos sobre a continuidade do cuidado: cuidar ou não cuidar? O processo tende a ser dificultoso, permeado de momentos ainda mais estressantes para ambas as partes. Deixar que a pessoa persista com suas dificuldades pode ser uma resposta mais fácil. Assim, ninguém vai se incomodar, e todos vão levando as coisas com aparente tranquilidade. Isso pode, entretanto, comprometer sua saúde e qualidade de vida.

Nos casos em que a pessoa não tem a desenvoltura psicoemocional e cognitiva para manter o autocuidado básico, cabe ao cuidador tomar algumas decisões e providências, mesmo que estas a desagradem. Diante dessa intricada dinâmica e do importante dilema entre aquilo que o outro precisa e aquilo que ele permite que seja feito, é fundamental ressaltar a responsabilidade inerente ao cuidador. Ainda que este se sinta limitado ou restringido, é essencial chegar a um entendimento mútuo em que o cuidador possa executar suas funções de forma respeitosa, e a pessoa cuidada reconheça a importância da assistência prestada. É na construção desse consenso que se encontra a chave para enfrentar os desafios do cuidado com compreensão e empatia recíprocas.

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