A verdade em “nós”

Será que toda verdade é absoluta? Mal sabiam eles que o dito era apenas uma sugestão, e não um fato incontestável. Aliás, diga-se de passagem, tudo pode ou deveria ser refletido, pois os eventos possuem diferentes ângulos e, portanto, são passíveis de interpretações divergentes. Há quem acredite na concretude e objetividade dos fatos, mas já pararam para pensar em suas inúmeras camadas?

Algumas, inclusive, emaranhadas de tal forma que chegam a fazer um grande “nó”, naturalizado em nós como verdade absoluta. É quando emparelhamos as coisas do mundo com os nossos pensamentos e, se pertencerem à mesma categoria de entendimento, são tomadas como certas e definitivas. Caso contrário, são classificadas como inverdades e descartadas ou desqualificadas. Esse é um movimento espontâneo, garantido pela lógica previamente designada pela sociedade ou por grupos sociais para que não haja engano, assim seguimos todos na mesma página, assegurando a nossa sujeição.

Quanta ilusão, não é mesmo?! Construímos um mundo com base nas verdades relativas, supondo que a simples ausência de mentiras seria suficiente para nos manter ligados sincera e intimamente uns com os outros. Porém, o fato presumidamente existente nem sempre corresponde ao subjetivamente constatado. Há nuances infinitas e mutáveis nessa correlação que nos impedem de afirmar o que é real e o que é realidade. Parece que a verdade é proporcional às contingências em que vivemos, o que torna real a realidade, mesmo que não o seja.

Seria muito melhor podermos tranquilizar nossa consciência sobre o travesseiro, vivendo os mais inusitados acontecimentos humanos com a certeza de que eles são aquilo que dizem ser. Entretanto, há um “nó” bem atado, difícil de se desfazer: trata-se da verdade arquitetada para ser a única perspectiva sobre qualquer coisa. Oficialmente, ela referencia nosso cotidiano e vai moldando a forma como nos relacionamos com tudo. Então, quando alguma coisa acontece, vamos logo lançando mão da verdade difundida e transformamos o “nó” em “nós”. 

É assim que também ficamos atados… rendemo-nos à eficiente fábrica de construir verdades e entramos no jogo acirrado das narrativas, disputando o controle sobre os fatos. Na maioria das vezes, ignoramos por completo, ou quase completamente, a coisa em si. Apesar disso, dispomo-nos a reproduzir aquilo que ouvimos ou lemos sem crítica alguma. Dessa forma, também aprisionamos os outros no nosso próprio desconhecimento para seguirmos sendo os maiores acionistas da realidade forjada. É assim, simples assim! Um vai e vem, vai e fica todo mundo no mesmo barco afundado até o pescoço com dados e informações convertidas em “nós”.

O cardápio de verdades é eclético. Há receita pronta para todos os tipos de paladar e está ao alcance dos dedos para servir o nosso prato preferido com um único clique. É uma espécie de disque-verdade que podemos acionar cada vez que um grande evento ocorre. Dependendo do fornecedor, ela vem temperada de mais ou menos ilusões, mas os ingredientes são basicamente os mesmos e o “nó” se instala em nós.

A verdade factual quase nunca coincide com aquela derivada da crença ou do gosto do freguês. Ainda que os fatos materiais sejam imutáveis, o que representa algo praticamente impossível, nossa interpretação do mundo acaba postulando verdades funcionais, que atendem, sobretudo, a necessidade de apresentar uma explicação justificável para a ocorrência da coisa em si.

De qualquer maneira, o que vem se sucedendo no mundo contemporâneo não é muito diferente de antigamente. Os meios variaram e se tornaram mais ágeis, encurtando o tempo de disseminação dos “nós”, mas o impacto na interação das pessoas e nas relações entre as nações continua provocando tanto rupturas quanto alianças. Nem uma nem outra, ou uma e outra, são necessariamente positivas ou negativas. Tudo depende de quem está posicionado em cada uma das pontas da comunicação e do que é veiculado nesse circuito.

Ainda é impossível atestar qualquer verdade sem “nós”. Por outro lado, a (in)verdade em nós parece ter pernas próprias, pois é amplificada por um jeito particular de estabelecer a ordem mundial, relativizada e transformada para ser mais palatável e, assim, cooptar simpatizantes pelo caminho. A melhor resposta que podemos oferecer à guerra de narrativas que vem dominando o mundo talvez seja não renunciar à nossa dignidade humana. Entretanto, isso demanda reconhecer a humanidade em nós.

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