A cada estação, uma tragédia

Uma das coisas que muito me inspira “realidade concreta” são os deslocamentos de metrô. Não importa a hora, entre uma estação e outra, no entra e sai de pessoas, é possível testemunhar uma infinidade de seres carregando as mais variadas histórias, inclusive algumas aparentemente desvairadas (histórias e pessoas!).

Ali, a vida acontece desapiedada, sem constrangimento nem pressa existencial. No vagão, as coisas são porque se dizem ser, e não ousamos desdizê-las. A correria fica por conta da lógica da subsistência, destituída de brechas para qualquer reflexão crítica antes ou depois de um dia exaustivo de trabalho. É o retrato fiel do mundo subtraído da possibilidade de pensá-lo diferente. Somos apenas convidados a contemplar a estampa do cotidiano e a torcer para que as pessoas, pelo menos longe daqueles trilhos, encontrem alguma poesia para confortar o coração.

Dependendo da linha do metrô, é visível a mudança na aparência dos “usuários”. Em alguns trechos, os vagões são tomados por trabalhadores que transpiram cansaço e ajeitam a cabeça de alguma maneira para tirar um cochilo. Nem sempre isso ocorre no final do dia. Essa cena, atemporal, é performada por homens e mulheres, jovens e adultos, engravatados e rasgados, maquiados e de cara lavada. Os protagonistas mostram claramente que cada um faz seus “corres” do jeito que dá.

Conforme o trem avança, vai chacoalhando e impondo àquelas pessoas uma dança constante de concessão do espaço (e da dignidade, em alguns casos!). Um empurrãozinho ali, meio passinho para o lado, e elas vão se espremendo como conseguem. Nada disso é novidade na grande metrópole. A vida difícil dentro do metrô é famosa. Corre de boca em boca e se aloja no imaginário coletivo como sinônimo de luta pela sobrevivência, tal como a sociedade já configurou.

A cada estação, entram mais e mais pessoas, muitas e muitas histórias que se espalham pelos vagões. Algumas em forma de prosa, discorrendo certa desgraça familiar. Outras, como choro anunciado, interrompendo o cochilo para nos lembrar que a vida dói. Há também as cantorias em estilo musical diverso, sempre acompanhadas do chapéu para arrecadar dinheiro no final da apresentação. O que existe em comum entre todas essas intervenções é a tragédia humana, encarada com desconfiança na maior parte do tempo, principalmente quando as histórias abraçam enredos muito semelhantes. Os fatos narrados costumam ser tão recorrentes que geram frequentemente incredulidade e escorregam no limbo da indiferença. Com algumas meias exceções, é claro!

Outro dia, um senhor conquistou a generosidade de uma passageira ao contar que havia sido internado para resolver um problema sério de saúde, e agora lhe faltava dinheiro para voltar à sua cidade natal. Na estação seguinte, uma senhora entrou no vagão relatando praticamente a mesma história e pedindo qualquer valor para completar sua passagem de ônibus. Isso causou indignação na passageira, que comentou em voz alta o quanto se sentia enganada pelas histórias que pareciam plágio e apenas se diferenciavam pelos personagens.

Olhando os dois lados do cenário, é até compreensível que elas, pessoas e histórias, provoquem suspeitas. Entretanto, qualquer semelhança pode não ser mera coincidência. Sem uma proximidade com a realidade das pessoas, nunca saberemos o que está por trás das suas narrativas, tampouco podemos afirmá-las, de antemão, como drama de ficção. Se elas mentiram ou falaram a verdade, não nos cabe julgamento. O fato é que há elementos de sobra para reconhecermos que a vida não está fácil para a grande maioria da população. O que presenciamos nos vagões é uma pequena amostra do contexto global: a desventura humana embarca sem sequer pagar bilhete e anda grudada uma na outra, espremendo-se para monopolizar nossa atenção. Nós, todavia, seguimos sem nos darmos conta da urgência da nossa transformação.

Em sua entrevista sobre “o futuro da humanidade“, Sidarta Ribeiro fez uma análise minuciosa sobre os caminhos que nos trouxeram ao caos contemporâneo. Seus recortes dão um nó na garganta e desanimam qualquer pessoa. Chegam a ser igual a andar de metrô: a cada estação uma tragédia! Ele deixa claro que podemos até ocupar vagões diferentes, mas o trem segue na mesma direção, e chegaremos ao destino que aguarda a todos igualmente. Faltando quatro minutos para encerrar a sua fala, Sidarta tenta resgatar o sopro da esperança em nós, explicando que aprendemos muito nos últimos 60 mil anos e temos potencial para mudar o rumo das coisas, apesar de vivermos uma crise planetária gigante. Para tanto, é necessário mantermos o otimismo genuíno… em todas as estações! 

Esse post foi publicado em Crônicas, contos e poemas, Meditando e marcado , , , , , , , , . Guardar link permanente.

Deixe um comentário