Lá, um lugar que nunca chega

A sala estava em completa sintonia com a voz suave da condutora, que guiava nossa meditação. Havíamos passado uma manhã produtiva, com troca de ideias e práticas revigorantes, e caminhávamos para o fechamento do encontro. O tema central era o desenvolvimento do ser como um todo integrado à natureza, contemplando também a saúde física, emocional, mental e espiritual. Verdadeiro privilégio em dias tão conturbados como esses que vivemos atualmente. Uma pausa importante para refletirmos sobre aonde estamos indo.

O corpo sereno convidava o pensamento a se tranquilizar com a ideia de que, de alguma maneira, o caminho sempre desponta à nossa frente. Muitas vezes, forma pequenos atalhos que parecem nos desviar da estrada principal e trazem emoções fortes diante do desconhecido. Em outras, estabelece uma reta infindável e cansativa justamente pela falta de novidade. Seja qual for o percurso, o fato é que há um lugar esperado para se chegar: lá!

Um dia chegamos lá! Lá, quando eu crescer. Lá, ao terminar a faculade ou quando conseguir meu primeiro trabalho. Lá, quando sair de casa para formar uma família ou morar com amigos. Lá, quando as coisas acontecem e provocam uma reviravolta na vida. Lá, que deixa de ser um lugar e se torna um tempo. Um tempo interminável porque as possibilidades de existirmos são infinitas e a nossa busca é eterna.

Aos poucos esses pensamentos eram convidados a atender apenas o comando da voz na sala: “Perceba-se no aqui! Perceba as sensações do corpo e entre em sintonia com seus sentimentos”. É isso, concluí: o aqui é a luz no final do túnel. É o “lá” almejado em algum momento anterior, mesmo que de forma inconsciente. É o “ali” onde existimos sem gastar nossos neurônios e onde devemos concentrar nossa atenção plena.

Imediatamente me lembrei da obra clássica do Richard Bach, “Longe é um lugar que não existe”, em que ele discorre sobre a possibilidade de nos unirmos uns aos outros, no tempo e no espaço e ensina que a presença é afronteiriça. Mais uma vez, o “lá” me pareceu uma construção utópica da nossa mente para dar conta de nos impulsionar no movimento da vida. Algo que serve para nos remeter ao futuro, à busca pelo que falta. Porém, assim como o “longe”, o “lá” também não existe. A única possibilidade de ser é o “aqui”, e isto certamente pressupõe uma conexão verdadeira com o universo.

Tudo caminhava para que aquela prática meditativa nos ajudasse a reencontrar o prumo e a entender que o presente define absolutamente tudo. Após um ano intenso e agitado no âmbito individual e coletivo, esse reforço era bem-vindo e igualmente necessário. Um cutucão a mais para despertar a consciência de que só podemos nos conceber na relação com o todo no qual estamos inseridos agora. Esse é o “todo” a que alguns chamam de cosmos, outros de sagrado. Porém, o nome é só um detalhe, e basta reconhecer que somos seus agentes benfazejos, nada mais. E, em assim sendo, o imponderável “lá” é o todo onipresente “aqui” que nos permite realizar as mais variadas façanhas do viver.

E a voz serena continuava a sugerir a respiração pausada para relaxar o corpo,  desapegar do pensamento e sintonizar com o nosso verdadeiro eu, até que foi  subitamente interrompida por uma gravação que vinha de algum celular na sala: “conexão do GPS perdida, é preciso recalcular a rota”. Não sei quanto aos demais, mas uma boa gargalhada mental derrubou meu devaneio existencial por terra. A mensagem parecia uma resposta concreta do universo nos lembrando de que o trânsito entre “lá” e o “ali” pode ser um pouco mais complexo e exigir um empenho extra da nossa parte.

A intromissão do GPS me fez perceber que somos constantemente desafiados pelas distrações externas e pelas incertezas do cotidiano, mesmo quando buscamos por conexão interior. A mensagem descontextualizada se tornou uma metáfora vívida: o caminho para o “lá” desejado pode ser imprevisível e exigir recalibrações constantes. É uma valiosa lição sobre a importância de mantermos o equilíbrio entre as nossas aspirações e a plena consciência do “aqui”. Assim como o universo nos instiga a recalcular a rota, somos chamados a abraçar nossa jornada, reconhecendo que o verdadeiro lugar de realização e existência não é outro senão o “agoraqui”.

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