Ao amigo que partiu

Foto: thanks to Chris Arnold, in memorian

Tentei fazer uma pesquisa sobre músicas e poemas que falam à respeito de amigos, mas acabei desistindo antes mesmo de começar. Fui tomada pela certeza de que tudo o que já foi cantado, falado, escrito e declarado sobre amizade é de primeira grandeza. E teria outra maneira de ser?!

O valor da amizade é do tipo que não tem dígitos suficientes para dimensioná-lo, nem palavra específica que consiga traduzi-lo. Talvez venha daí as incansáveis tentativas de abordar o tema em todas as línguas e de todas as formas. Mas quero me dar o direito de incluir mais um texto nesta infindável lista, mesmo que soe redundante, repetitiva e comum. Como incentivaria meu poeta favorito, Fernando Pessoa, vale a pena traçar essas linhas porque minha alma não é pequena.

Nem um pouco, aliás, pois ela agrega tantas outras almas que nem cabe no peito, tamanha a emoção. E, neste momento, está ainda mais encharcada de gratidão pelo privilégio da amizade de pessoas tão queridas e especiais. Algumas que sabem exatamente a dimensão que têm em minha trajetória, outras que de vez em quando ainda duvidam do seu espaço em meu cotidiano. Umas geograficamente distantes, todas espiritualmente presentes. Pessoas que, sem nem saberem ao certo, de vez em sempre me acolhem e facilitam a minha travessia nesse mundão. De fato, não há como reduzir a alma diante da abundância e da diversidade do afeto nessas relações de amizade. São elas que sustentam o que carrego de mais precioso dentro de mim: a fé inabalável na impermanência de tudo.

Com idas e vindas, lá e cá, que somam mais aventuras felizes do que preocupações e que resultam em mais oportunidades para ampliar as amizades, só tenho a dobrar os joelhos e dizer que aprendi a viver o melhor de cada relação, renovando esse compromisso a cada amanhecer. Todas as pessoas nos ensinam alguma coisa e, do seu jeito, colaboram para o nosso amadurecimento. Algumas nos abrem os olhos, outras melhoram a nossa escuta. Tem aquelas que são como um bom livro: você começa a conversar e não quer parar mais. E tem também as que nos ensinam com suas perguntas libertadoras e compartilham conosco o silêncio que as respostas nos impõem.

Nunca sabemos o que está reservado para nós no minuto seguinte, e como tudo é impermanente, a certeza de que o depois não existe no tempo torna-se suficiente para nos encher os olhos de alegria ou derramar todas as lágrimas de tristeza, dependendo do que a ocasião pedir, sem nenhum pudor. O que importa mesmo é a intensidade com que nos entregamos às experiências com o outro, sem demora, sem espera, da maneira possível, no momento presente. Afinal, até mesmo as pessoas passam em nosso caminho. Elas também são eternas peregrinas, com idas e nem sempre vindas, cruzando fronteiras, inclusive as invisíveis.

Neste momento, há paz e serenidade transbordando em meu coração, mas também um pouco de tristeza. Há alegria e esperança, ainda que o sentimento de perda seja inevitável. Quando se tem um amigo que nunca mais encontraremos neste plano terreno, todos esses sentimentos formam um emaranhado que aperta o coração. Mas quando esse amigo é alguém que nunca encontramos de fato, neste plano terreno, é a alma que sente o sufoco do luto. É como se ele tivesse passado, sem ter passado. Mas é, certamente, como se ele tivesse ficado, pra sempre.

Conheci uma dessas almas que Deus coloca no mundo para inspirar nosso caminho, por causa de uma paixão em comum: a fotografia. Ambos tivemos a alegria de participar, em diferentes períodos, de um workshop com um fotógrafo que admiramos muito. Para além da técnica, nossas experiências foram permeadas de muita humanidade e ambos reconhecemos no trabalho desse fotógrafo o que chamamos de alma genuína. Foi em torno desse sentimento que mantivemos contato e desenvolvemos laços de amizade.

Nunca nos encontramos pessoalmente, mas de forma espontânea e natural, estabelecemos um vínculo fraterno. Quando soube do avanço implacável da sua doença, fiquei muito sensibilizada e logo pensei: se alguém nos toca tão profundamente sem nunca termos nos conhecido de fato, certamente é porque conseguiu captar a nossa alma, sem filtro. Por isso, tudo passa, mas carregamos conosco as vibrações geradas por essas experiências sagradas.

Outro dia, acordei pensando nele e em sua família. Fiquei imaginando como estariam lidando com a sua despedida. Também me lembrei que não teria nenhuma oportunidade para abraçá-lo, mas busquei alcançá-lo com a minha oração. Se pudesse estar presente, apenas repetiria o que havia registrado antes: agradeço a honra de te conhecer, sem ter conhecido, e de aprender, em tão pouco tempo, a admirar tua resignação, lucidez e serenidade.

Naquele mesmo dia, recebi a mensagem da sua esposa: “eu o vejo nadando no fluxo, sem peso e alegremente”. Ele partiu. Te encontro no fluxo, qualquer dia desses, amigo querido…

Foto: thanks to Chris Arnold, in memorian
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10 respostas para Ao amigo que partiu

  1. Silvia Canini disse:

    Andrea, este texto inundado de sabedoria e sentimentos me inspirou profundas reflexões. Te admiro como mulher, fotógrafa e escritora. Por meio da lente do seu amigo, não importa de qual dimensão, está a tradução de uma alma poderosa. A captura de uma imagem que transpira luz. Que Deus, em sua infinita bondade, o acompanhe no fluxo.

    • Silvia, que lindas palavras. Agradeço de todo o coração e reforço tuas vibrações para que ele encontre aconchego espiritual na sua travessia.
      Forte abraço no coração!
      🙂

  2. Miguel Silva santinho disse:

    Que delicia de leitura, sensível, emocionante. Quando termino de ler seus texto sempre fico na expectativa do próximo, super beijo querida Andrea.

  3. GUILHERME AZEVEDO DO VALLE disse:

    Querida Andrea!
    Emociona o texto ao amigo que partiu e, nas entre linhas, aos que não partiram! Me é difícil ainda aceitar e viver a impermanência, passei a vida ansiando o permanente, e não era na dimensão material! Sim, talvez a amizade, o amor e o que mais, não sejam permanentes! Posso entender filosoficamente, mas no viver o dia a dia não consigo ainda (ignorância minha! Ainda bem que nada é permanente, o que permite a esperança de um dia não tê-la mais!) Atualmente, tomar consciência disto me deixa mais triste do que alegre ou em paz! Mas admiro e fico feliz por quem já consegue viajar mais livre, solto e feliz com “a fé inabalável na impermanência de tudo”.
    Gratidão por ter me provocado a ler o seu belo texto!!!

    • Guilherme, agradeço sua reação à minha provocação e concordo totalmente que a assimilação da impermanência é desafiadora, embora libertadora. Um passo por vez e cada um, no seu próprio ritmo e tempo, acaba entrando serenamente no fluxo sagrado. Nós também chegaremos lá!
      Forte axé no coração!!
      🙏🏼💐

  4. Majô Bordin disse:

    Oi linda!
    Que beleza de texto!
    Quanta sensibilidade!
    Beijos da tia!

  5. Sulla Mumme disse:

    Andrea minha amiga ! Que texto maravilhoso, sensível e que me emocionou profundamente. Tamanha sabedoria sua em colocar no papel um sentimento tão nobre; tamanha dificuldade humana em aceitar a impermanência.
    Lutamos contra a natureza desafiando a sabedoria Universal que tudo sabe .

    • Concordo totalmente com vc, Sula. É tão importante incorporarmos essa sabedoria no nosso cotidiano; ganharíamos mais leveza e avançaríamos com mais amorosidade na tarefa de nos tornarmos Um com o sagrado.
      Sempre grata por seus comentários, amiga querida!
      forte axé no coração 🙂

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