
Este texto foi originalmente publicado em minha coluna digital na Editora Eureka. Visitem o site (www.editoraeureka.com.br) para conhecer a Editora e sigam também o Instagram: @eurekadigitalapp
Em tempos remotos, dedicar-se à família e acumular uma boa herança eram tarefas primordiais. Os pais viviam para executá-las com empenho. A educação dos filhos, assim como a carreira profissional ou os negócios, consumia a atenção exclusiva deles. Sobrava pouco tempo para o desenvolvimento pessoal e, com frequência, as relações de benquerença eram definidas mais pela vara de marmelo do que pelo diálogo amoroso.
Na maioria das famílias dava-se mais importância àquilo que as crianças se tornariam ou deveriam se tornar em um futuro praticamente determinado pela força do seu sobrenome. Expectativas e sonhos marcavam suas relações. De um lado, os adultos abriam mão de si mesmos. Do outro, as crianças carregavam a sina de crescer sendo o reflexo dos pais. E, na tarefa de desempenhar o papel que cabia a cada um, o afeto se diluía. Em meio às obrigações sociais cotidianas, as poucas conversas giravam em torno das exigências formais e os abraços se limitavam aos dias de festividades. Assim era a vida nas células familiares mais diversas possíveis.
Embora houvesse amor, a convivência entre os membros do grupo permitia expressar pouca emoção. Válido mesmo era o reconhecimento da autoridade, que intimidava a espontaneidade e ameaçava a sapequice das crianças. Esperava-se dos filhos a obediência inquestionável. E, entre os casais, a lealdade ao compromisso de educá-los, sem importar o preço a se pagar por isso.
O mais comum era encontrar marido e esposa omitindo-se da união amorosa em nome da prole. Renunciavam a possibilidade do romance para viver o casamento da maneira tradicional e conservadora que receberam de herança da geração anterior. Pai e mãe não eram seres comuns, com direito a crises existenciais e aspirações individuais. O coletivo familiar se impunha, desqualificando qualquer pretensão pessoal. Os adultos da família logo se tornavam os velhos ranzinzas e as frustrações eram creditadas na conta dos filhos. Em especial na caderneta de poupança dos primogênitos, pois eles experimentavam a imaturidade dos pais de primeira viagem com juros elevados.
Esse tipo de relação gerava dívidas morais impagáveis: os pais viviam para os filhos e estes, em contrapartida, deveriam viver pelos pais. O fardo da renúncia de uma vida própria entrava, naturalmente, no testamento dos herdeiros. E mesmo tentando driblar esta armadilha, a segunda geração se via presa ao dilema: conquistar independência ou amortizar o “empréstimo” feito pelos pais? A controversa do financiamento emocional sempre promoveu mais tragédias pessoais do que a autonomia dos filhos. Em todo caso, esse modelo persistiu por muito tempo, ainda que de maneira mais ou menos sutil e com pequenas diferenças entre uma geração e outra.
Muitos filhos se tornavam péssimos pagadores. Outros, bons devedores. Vários ninhos entraram em crise por causa do vazio deixado pela saída da prole. Poucos pais aproveitaram a ocasião para investir em seus próprios projetos. A maioria permaneceu tratando os filhos como crianças, reapresentando a nota promissória a cada visita, telefonema ou carta (sim, houve uma época em que se enviava carta pelo correio!). O montante foi alto demais para ambas as partes, acrescentando-se também juros emocionais sobre a relação. Quantos desses frutos se tornaram adultos infelizes, gerando outros filhos também angustiados?
Ainda bem que os tempos mudaram e que a nossa compreensão sobre família também ganhou novos contornos. Certamente, as configurações contemporâneas ainda nos desafiam, principalmente porque nos colocam a repensar valores e prioridades para encontrarmos o equilíbrio que nos permite maior harmonia interior. É uma conjugação complexa, mas necessária.
Hoje, quando observo as famílias lidando com a educação dos filhos, pelo menos em sua maioria, sinto uma grande dose de esperança. Parece que aquele tempo de renúncia pessoal encontrou seu ponto final e as novas gerações estão mais aptas a conciliar a realização pessoal com a paternidade e a maternidade.
A realidade histórica já comprovou que a melhor herança que podemos deixar para os filhos é cuidarmos da própria felicidade. Ao ignorarmos a nossa individualidade e refutarmos a necessidade do autodesenvolvimento, condenamos nossos filhos a nos carregarem como fardos em suas bagagens. Mas, ao contrário, quando procuramos crescer como pessoas e fortalecemos nossa capacidade afetiva, os filhos também se potencializam. Eles superam com mais confiança as suas fragilidades e estabelecem planos de voo para mais longe, sem perderem o rumo de casa. A volta ao aconchego dos pais torna-se prazerosa e natural.
Pássaros que levam em suas asas a frustração dos pais perdem a vitalidade na própria base. Eles se afastam do ninho como quem foge do cobrador algoz. E acabam sentenciando os pais à solidão que eles mesmos criaram ao abandonar os próprios sonhos para preencherem seus dias com a vida dos filhos. Não há quem aguente esse peso desnecessário. Nem de um lado, nem de outro. Essa conta nunca fecha e empobrece nossa alma.
Pais que se abstêm do convite de serem pessoas melhores, depositando todas as fichas para tornarem seus filhos melhores, correm o risco de se iludirem na mesma medida. É como mergulhar no abismo. Nunca sabemos o que acontece durante o salto, mas a queda é certa. Por isso, ao perguntarmos onde perdemos os filhos, a reposta só pode ser uma: naquele exato momento em que nos esquecemos de nós mesmos. Fica, então, uma singela constatação: é preciso se encontrar na própria pele para não perder os filhos dentro de casa.
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Os pais são pessoas que precisam se realizar por si mesmas e não através do filhos. Muitas e muitas vezes frustrados e cobrando-se mutuamente, sem perceber que se desrespeitaram. Isso vale também para qualquer tipo de relação onde esquecemos de nós em prol do outro, certamente gera frustração e tristeza.
Concordo plenamente com você, Sula. Sempre que nos perdemos nós mesmos comprometemos nossos relacionamentos.
Ótima ponderação 😉
Beijos